Blog da Fê para Você

Por Fernanda Oliveira

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Terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Crônica

O PAPAGAIO DEPRESSIVO


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Narração: Cinthya Bittencourt

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Compraram o papagaio com a garantia que era um papagaio falador. Não calava a boca. Ia ser divertido. Não há nada mais engraçado do que que um papagaio certo? Aquela voz safada, aquele ar gozador. Mas este papagaio era diferente.

No momento em que chegou em casa, o papagaio rodeado pelas crianças. Dali a pouco um dos garotos foi perguntar ao pai:

— O quê?

O Papagaio estava citando Kierkegaard para as crianças. Algo sobre a insignificância do Ser diante do Nada. E fazendo a ressalva que, ao contrário de kierkegaard, ele não encontrava a resposta numa racionalização da cosmogonia cristã. O pai mandou as crianças se afastassem e encarou o papagaio.

 — Dá a patinha, Louro.

— Por quê? — disse o papagaio.

— Como, por quê? Porque sim.

— Essa resposta não é aceitável. A não ser como corolário de um posicionamento mais amplo sobre a gratuidade do gesto enquanto…

— Chega!

— Certo. Chega. Eu também sinto um certo enfado com a minha própria compulsão analítica. O que foi que disse o bardo? “O mundo está demais conosco.” Mas o que fazer? Estamos condenados à autoconsciência. Existir é questionar, como disse…

O pai tentou devolver o papagaio, mas não o aceitaram de volta. A garantia era de que o papagaio falava. Não garantiram que seria engraçado. E o papagaio, realmente, não para de falar. Um dia o pai chegou em casa e foi recebido com a notícia que a cozinheira tentara se suicidar. Mas como? A Rosaura, sempre tão bem disposta?

— Foi o papagaio.

— O papagaio?

— Ele encheu a cabeça dela. A futilidade da existência, a indiferença do Universo, sei lá.

Aquilo não podia continuar assim. Os amigos iam visitar, esperando se divertir com a conversa do papagaio depressivo.

No princípio riam muito, sacudiam a cabeça e comentavam: “Veja só, um papagaio filósofo…” Mas em pouco tempo ficavam sérios. Saíam contemplativos. E deprimidos.

— Sabe que algumas coisas que ele diz…

— Eu nunca tinha pensado naquela questão que ele colocou, da transitoriedade da matéria…

Os vizinhos reclamavam. O negativismo do papagaio enchia o poço do edifício e entrava pelas cozinhas. Como se não tivessem bastante preocupações com o preço do feijão, ainda tinham que pensar na finitude humana? O papagaio precisava ser silenciado.

Foi numa madrugada. O pai entrou na cozinha. Acendeu a luz, interrompendo uma dissertação crítica sobre Camus que o papagaio — que era sartreano — fazia no escuro. Pegou um facão.

— Hmmm. — disse o papagaio. — Então vai ser assim.

— Vai.

— Está certo. Você tem o poder. E o facão. Eu sou apenas um papagaio, estou preso neste poleiro. Mas você já pensou bem no que vai fazer?

— É a única solução. A não ser que você prometa nunca mais abrir a boca.

— Isso eu não posso fazer. Sou um papagaio falador. Biologia é destino.

— Então…

— Espere. Pense na imoralidade do seu gesto.

— Mas você mesmo diz que a moral é relativa. Em termos absolutos, num mundo absurdo nenhum gesto é mais ou menos moral do que outro.

— Sim, mas estamos falando de sua moral burguesa. Mesmo ilusória, ela existe enquanto determina o seu sistema de valores.

— Sim, mas…

— Espere. Deixe eu terminar. Sente aí e vamos discutir esta questão. Wittgenstein dizia que…



Luís Fernando Veríssimo


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